Era madrugada. Ela caminhava pela calçada,
lotada de mesas, cadeiras e pessoas.
Nunca estivera lá. Não estava perdida,
apesar de não saber aonde estava, mas tinha um senso de direção.
As luzes alaranjadas dos postes refletiam
nos rostos das pessoas ali sentadas. Enquanto ela caminhava por entre as mesas,
tinha a impressão de conhecer todos aqueles rostos de um universo paralelo.
Todos lhe eram familiares. Mas provindos de uma lembrança inexistente, ausente
e de fatos não concretizados.
Ela os observava enquanto passava. Cada
qual aparentava estar entretido entre conversas, bebidas e gargalhadas. Mas,
para ela, aquilo tudo ali era uma farsa, um improviso, uma fraude social. E
pior... sentia como se algo mais forjado estivesse por vir.
Sua companhia a obrigou a sentar. - Talvez eles sejam como ele, pensou, já
que, de todos os lugares possíveis, ele a carregou até ali, com aquelas pessoas
perturbadoras.
A conversa fluía e, abaixo da mesa, ele
apertava sua perna, desejando que ela se sentisse atraída e dominada por ele. E
ela, disfarçando a estranheza, sorria de forma miméticamente falsa.
Certa efervescência afetava seu corpo e ela
não conseguia mais pensar claramente enquanto aquele homem falava e gesticulava,
incessantemente. Então ela rebuscou refúgio, com rebuço, naqueles rostos que
eram, simultaneamente, estranhos e familiares. Ela fixou seu olhar em cada um
deles, até que todos ofuscassem e sumissem.
Ele segurou sua mão e, dominada pelo
reflexo, um copo repartiu-se ao chão. Ele resgatou os cacos maiores e
colocou-os na mesa. Ao olhar o reflexo da luz alaranjada nos cacos, com sua
alma roubada por um delírio exaltado, ela empunhou o pedaço de vidro mais
avantajado e o fincou no pescoço daquele que a tentava dominar.
Ela o matou, seu avó. E sua vagina nunca
mais sangrou.
(Dia 18 de maio: Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração
Sexual de Crianças e Adolescentes)