quinta-feira, 26 de julho de 2012

Lua com dentes


Noite tranquila aquela, com estrelas cintilantes. Sem vento, apenas o ar fresco, um pouco gelado, como numa madrugada do começo do outono.
Um cenário burguês. Estávamos na cobertura de um edifício com dois copos de whisky ao nosso lado, um para mim e outro para ela. Nos deitamos no chão como se ele fosse uma cama e fizemos do céu o nosso teto.
Observamos duas luas conversando. Seus dentes se deslocavam, mas não escutávamos o que ambas diziam.
Estávamos extasiadas; encantadas com aquela cena. - Sobre o que conversariam aquelas duas luas sorridentes?, questionamos. Parecia que uma lua puxava a outra como se estivessem pendentes. Na verdade, parecia que brincavam na gangorra.
Gargalhamos. Parecia que fazíamos parte de um filme de Luís Buñuel. No fundo, gostaríamos que as luas fizessem contato conosco.
Depois surgiram os vagalumes... Aparecer e desaparecer, quando na verdade ainda se está lá. Marcar e desmarcar, quando tudo o que é feito nunca mais será desfeito. Realizar uma ação e depois esquecê-la, quando as consequências de qualquer movimento já existem. Provocar um efeito e depois sumir com o efeito, como se fosse possível esquecer de algo que resplandeceu.
- Somos pontos no universo, dizíamos. - Meras consequências de um erro qualquer.
Entre um gole e outro nos esquecíamos da vida cotidiana. Ríamos do banalismo e das pessoas narcisistas.
- Sobre o amor? Rá! Que amor? O que é isso?
Uma pomba cinza estava intacta, em cima de uma pequena estátua nos observando. - Mas pombas alcançam os edifícios? Pombas são noturnas?
Poderíamos questionar tudo ao nosso redor e nunca concluiríamos nada. Essa era a sensação!
E no silêncio e estaticidade em que nos encontrávamos, vimos um triângulo azul vindo do céu se aproximando de nós. Ele se aproximava, aproximava... e sua luz aumentava... Aos poucos, um mantra era repetido OWN... ALIZÁÁ... OWN... ALIZÁÁ... OWN... ALIZÁÁ... RATATÁ...
O triângulo nos sugou, talvez para uma outra imaginação...

Texto dedicado a Lilian Brilhan.

Reflexão intermunicipal

   O balbuciar das árvores num ambiente barulhento. As pessoas encontram-se organizadas na rotina. O senhorzinho caminha com ar de perdido e com uma medalha pendurada no pescoço. A mulher ao meu lado arruma seus cabelos mirando-se no pequeno espelho improvisado. O silêncio nunca é perfeito nesse ambiente urbano. A surdez certamente virá antecipada, mas quem se importa? Enfrento as mesmas pessoas estranhas todos os dias, e continuam sendo desconhecidas.

     Aquele que me olha não me olha nos olhos e não sabe quem eu sou. Eu mesma me questiono sobre quem sou e formo minhas teorias, por isso nem tento imaginar as teorias estranhas sobre minha imagem e minha persona. Nunca quero estar em evidência nesse ambiente. Acho até que me tornei parte da paisagem cinza e despercebida. Aliás, talvez eu seja como a luz de leitura de cada poltrona do ônibus; todos sabem que ela está ali, mas poucos sabem o seu valor. Não o valor dela enquanto luz, mas sim enquanto significado. Aproveitar a luz, eis a questão. Atravessar o espaço e o tempo aproveitando a luz com um livro ou um livro com a luz. Percebe? A viagem humana do conhecimento, a leitura do ser, a suposta decodificação de um humano com o outro, a troca de valores. Ok! Assumo! Não sou tão sociável assim. Volto para os livros. Prefiro que não me perturbem mesmo. Quero o silêncio, o livro e a luz.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Sobre as coisas que não desfrutamos mais

     Desfrutar e depois não mais desfrutar. Falsa sensação de pertencimento, de ligação ininterrupta. Olhares que não nos miram mais. Sensações únicas, mas simplesmente momentâneas.
     Perder é preciso para poder capturar imagens e sensações com mais desejo, com mais saudade? Apenas no escuro, como provocado por um desfecho do obturador, que conseguimos valorizar a última imagem, a última sensação?
     Somos hipócritas? Sentimos dó de quem não está mais conosco? Sentimos remorsos por não termos aproveitado mais as companhias, os momentos, a centelha de sensibilidade de cada indivíduo?

     Refletir sobre a morte é inevitável. Eu mesma já a desejei. Eu mesma já imaginei o choro alheio sobre meu caixão. A verdade é que morrer é muito fácil. Sentir remorso também.
     Nosso senso de direção é facilmente alterado; já é delimitado. O reflexo que sentimos perante o caos cotidiano nos limita, nos envia para sensações não esperadas. Cruzamos caminhos aparentemente sem escolhas. Mas, por vezes, já havíamos escolhido.

[Sim, eu penso que poderia ter sido diferente. Sim, eu sinto remorso. Sim, eu gostaria de ter aproveitado mais. Sim, eu te diria sim. Sim, eu cruzaria o tempo... Sim, eu tentaria... Sim...]

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Nota de celular 2


E no auge de todos os sorrisos eu permaneço nessa inconstância e infelicidade. Tentar conviver socialmente é artifício, necessidade, solidão.

Nota de celular 1


É uma sensação estranha. Ainda há muito a se fazer por onde caminhar; sempre haverá em nossos dias atuais. Mas haverá época em que todos serão livres em suas atitudes. Talvez nem todas as mentes sejam livres, mas a atitude alheia será, sendo ela a que parte do princípio de seu ser e que não agride ao outro fisicamente. Encarando o caos de uma época conquista-se a paz. O medo existe. Mas não é algo para o qual se deva rastejar.

sábado, 7 de julho de 2012

Teclado fecal


     O notebook conectado a uma privada, grotesca e suja. O orifício, antro de impurezas e de restos intestinais, está exposto e aberto no teclado, rompendo o funcionamento de grande parte das letras, aquelas que formariam palavras mal vividas.
     Do que sairiam das teclas, eu não sei. Talvez simples metáforas, talvez conversas vazias, talvez ilusões.
     A privada me inibe. Não há maneira de escrever qualquer história com o notebook lotado de fezes, as mesmas fezes dos vizinhos, das pessoas próximas, de mim mesma. As fezes mescladas com um mundo invisível, disponível apenas conceitualmente.
     Estaria, eu, perdida entre as fezes? Não haveria encanamento suficiente para limpar toda a bagunça?
     Se vivo constantemente buscando aperfeiçoamentos, estaria perdida entre meus próprios limites? Existem limites?
     Tento não me sujar com as fezes, mas nem ao mesmo sei se as minhas estão conectadas. Desentupir não é uma tarefa fácil. Talvez eu deva jogar tudo fora, ao invés de tentar limpar o teclado. Talvez seja necessário reciclar minhas palavras, todos os meus textos, a sujeira do meu pensar.
     Observo. Espero. Mas não é do tipo de sujeira que sai pelos poros ou que se dissolve instantaneamente. É preciso limpar com cautela ou jogar tudo fora. Renovar.

Murmúrio dos vestígios ancestrais


Sugar o outro num ato de êxtase, com um beijo, rompendo meu coração moribundo e imperfeito.

Tento educar meus atos e a inconstância de meu ser.
Constante inconstância.

Continuo.
Calada.
Observo.
Eis que temo o tempo.
O tempo.
O todo.

Criar expectativas.
Expectar algo banhado no inconclusivo dos atos.

No murmúrio do não estático ouço palavras aguçadas pelo medo do abismo desvendado.
O fundo arcaico fora atingido, mas suas sombras são incansáveis.

Canso de buscar o não encontrável.
Não quero refúgio no palpitável, mas o aperto, como se não bastasse ser capturada pelos vestígios ancestrais.
Idolatro a fortaleza supersticiosa de minhas visões futuras ao rebuscar respostas no meu passado e nas íris dos desconhecidos dominados por meus lábios pulsantes.

Deixo estar, sem buscar mais nada.

Silencio.
Reflito.
Não concluo.
Mas vivo.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Diálogo inacabado

Perguntei ao barista 'quantas mágoas cabem num copo de whisky'. Ele se esquivou por segundos, mas me respondeu que 'depende do tamanho das mágoas guardadas'. 'Como se mede uma mágoa', questionei. 'Depende do tamanho da tua doação ao que te foi atingido', respondeu.

Perguntei ao cardiologista 'quanto amor cabe num coração humano'. Ele olhou para minha camiseta, talvez buscando algum tamanho proporcional, mas me respondeu que 'não deve caber muito, já que todas as emoções são moldadas'. 'Por que as moldamos', questionei. 'Deve ser para que nos sintamos grandiosos', respondeu.

Perguntei ao taxista 'quantos significados cabem nas palavras proferidas'. Ele respirou fundo, buscando referências nas lembranças de seus clientes e respondeu que 'poderiam caber muito mais, mas que os significados se perdem pelo caminho'. 'Por que se perdem', questionei. 'Talvez porque somos consideravelmente manipuláveis, fúteis e distraídos', respondeu.

Perguntei ao farmacêutico 'quanto de essência cabe em um ser mediano'. Ele analisou minha estatura, observando se estava pisando com as pontas dos dedos para curvar-me no balcão e me respondeu que 'a essência é uma mentira, já que tudo é construção'. 'Mas por que fala-se tanto em essência', questionei. 'É puro marketing barato', respondeu.

Perguntei ao florista 'quantos espinhos cabem numa rosa'. Ele, segurando a planta entre seus dedos e virando-a lentamente, respondeu que 'depende de quem a cultiva'. 'Conseguimos controlar os espinhos', questionei. 'Podemos sonhar', respondeu.

Perguntei ao ginecologista 'quantas sensações cabem num orgasmo'. Ele sorriu, talvez se recordando das reações de suas parceiras sexuais dos últimos anos, e proferiu que 'as sensações podem depender tanto da imaginação quanto da valorização do toque das peles, ou de ambos'. 'Mas e as emoções', questionei. 'As emoções são outra coisa', respondeu.

Perguntei ao entregador 'quanto de futuro cabe num pacote ao se conhecer alguém'. Ele abriu um pacote, analisou cada ângulo, inclusive sua profundidade. Mirou-me nos olhos e respondeu que 'depende de como utilizar a fita adesiva para regular a abertura'. 'E se não couber', questionei. 'Faça emendas e construa um novo pacote', respondeu.

Perguntei ao bagageiro 'quanto de alívio se descarrega ao deixar alguém'. Ele segurou uma mala em cada mão e disse que 'depende do tamanho do fardo'. 'Mas como saberei', questionei. 'Dissolvendo memórias inquietas', respondeu.

Perguntei ao mendigo 'quanta dor cabe na vida'. Ele olhou para suas mãos calejadas e, refletindo, me ensinou que a indagação deveria ser 'quanta vida cabe na dor, já que o mundo é movido por ela'. 'A dor salva', questionei. 'Não, a dor orienta', respondeu.

Perguntei ao vendedor 'quantos cigarros cabem na minha ansiedade'. Ele, soltando delicadamente a fumaça de seus lábios sedentos, me respondeu que 'se depender da indústria, cabem todos os cigarros possíveis'. 'Para que tudo isso', questionei. 'Falso consolo', respondeu.

Perguntei ao psiquiatra 'quantos remédios cabem no meu desespero'. Retirando cada comprimido da cartela e enfileirando-os, ele respondeu que 'depende se eu busco incessantemente a felicidade'. 'O que é a felicidade', questionei. 'A felicidade é um conceito, uma ideia fabricada, manipulada coletivamente e lançada como um produto popular doado no mercado sujo para seres impensantes', respondeu.