Perguntei ao barista 'quantas mágoas cabem num copo de whisky'.
Ele se esquivou por segundos, mas me respondeu que 'depende do tamanho das mágoas guardadas'. 'Como se mede uma mágoa', questionei. 'Depende do tamanho da tua doação ao que te foi atingido',
respondeu.
Perguntei ao cardiologista 'quanto amor cabe num coração humano'.
Ele olhou para minha camiseta, talvez buscando algum tamanho proporcional, mas
me respondeu que 'não deve caber muito,
já que todas as emoções são moldadas'. 'Por
que as moldamos', questionei. 'Deve
ser para que nos sintamos grandiosos', respondeu.
Perguntei ao taxista 'quantos significados cabem nas palavras
proferidas'. Ele respirou fundo, buscando referências nas lembranças de
seus clientes e respondeu que 'poderiam
caber muito mais, mas que os significados se perdem pelo caminho'. 'Por que se perdem', questionei. 'Talvez porque somos consideravelmente
manipuláveis, fúteis e distraídos', respondeu.
Perguntei ao farmacêutico 'quanto de essência cabe em um ser mediano'.
Ele analisou minha estatura, observando se estava pisando com as pontas dos
dedos para curvar-me no balcão e me respondeu que 'a essência é uma mentira, já que tudo é construção'. 'Mas por que fala-se tanto em essência',
questionei. 'É puro marketing barato',
respondeu.
Perguntei ao florista 'quantos espinhos cabem numa rosa'. Ele,
segurando a planta entre seus dedos e virando-a lentamente, respondeu que 'depende de quem a cultiva'. 'Conseguimos controlar os espinhos',
questionei. 'Podemos sonhar',
respondeu.
Perguntei ao ginecologista 'quantas sensações cabem num orgasmo'.
Ele sorriu, talvez se recordando das reações de suas parceiras sexuais dos
últimos anos, e proferiu que 'as
sensações podem depender tanto da imaginação quanto da valorização do toque das
peles, ou de ambos'. 'Mas e as
emoções', questionei. 'As emoções são
outra coisa', respondeu.
Perguntei ao entregador 'quanto de futuro cabe num pacote ao se
conhecer alguém'. Ele abriu um pacote, analisou cada ângulo, inclusive sua
profundidade. Mirou-me nos olhos e respondeu que 'depende de como utilizar a fita adesiva para regular a abertura'. 'E se não couber', questionei. 'Faça emendas e construa um novo pacote',
respondeu.
Perguntei ao bagageiro 'quanto de alívio se descarrega ao deixar
alguém'. Ele segurou uma mala em cada mão e disse que 'depende do tamanho do fardo'. 'Mas
como saberei', questionei. 'Dissolvendo
memórias inquietas', respondeu.
Perguntei ao mendigo 'quanta dor cabe na vida'. Ele olhou para
suas mãos calejadas e, refletindo, me ensinou que a indagação deveria ser 'quanta vida cabe na dor, já que o mundo é movido
por ela'. 'A dor salva',
questionei. 'Não, a dor orienta',
respondeu.
Perguntei ao vendedor 'quantos cigarros cabem na minha ansiedade'.
Ele, soltando delicadamente a fumaça de seus lábios sedentos, me respondeu que 'se depender da indústria, cabem todos os cigarros
possíveis'. 'Para que tudo isso',
questionei. 'Falso consolo',
respondeu.
Perguntei ao psiquiatra 'quantos remédios cabem no meu desespero'.
Retirando cada comprimido da cartela e enfileirando-os, ele respondeu que 'depende se eu busco incessantemente a felicidade'.
'O que é a felicidade', questionei. 'A felicidade é um conceito, uma ideia
fabricada, manipulada coletivamente e lançada como um produto popular doado no
mercado sujo para seres impensantes', respondeu.